sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Não vou mais cantar o amor



Eiiiiia! Eeeeeeiiiiiiiiaaaaaa!
Eiiiiaaaaôôôôô!


Não vou mais cantar o amor!


Chega!
Eu disse chega!


O amor qualquer um canta
os rotos, os cegos, os de voz rouca e torta
abrem a boca e cantam o amor
os do norte e os do sul,
os que saem à noite angustiados procurando os bares e ofertando sua alma no mercado das ilusões
os anões de circo, os homens de terno e gravata
as mulheres lindas e as mulheres feias cantam o amor
o vendedor de rosas vermelhas na noite dos enamorados e os malandros antiquados
cantam o amor


as velhas, as que não sabem o que é um beijo na omoplata cantam o amor
até as pedras verdes e as pedras cinzas
cantam o amor

Os ricos ficam mais ricos cantando o amor
os pobres empobrecem cantando o amor
os maiores cafajestes que conheci cantam o amor
os que perderam a perna na infância, os drogados de anfetaminas e álcool cantam o amor
os infectados de hiv, os loucos, os desajustados de toda a cidade
os que vivem na outra margem e nunca sentem o calor do sol em suas mãos
os porteiros sonolentos nas madrugadas tremendo de medo, os guardas armados e ansiosos para matar um preto pobre, os assaltantes de bancos, as prostitutas, os donos de bar cantam o amor


O amor qualquer um pode cantar
basta ter voz
e sem ter voz
basta esboçar um som
e sem ter som basta escrever
e cantar o amor

O analfabeto
o lavador de carros da minha rua
a psicóloga metida a besta e mal humorada
o barman atrolhado de serviço e problemas de abastecimento
a dona da loja fashion e loura
a gostosa do andar de baixo
o dono do Ocidente
o judeu do Oriente

qualquer um canta o amor

O amor é a coisa mais desejada de todas
Não é o dinheiro, não é o poder
Não
Não é a felicidade
O que todos querem mesmo
é o amor


Por isso, gostam tanto de ouvir falar sobre o amor
Por isso, tecem loas ao amor, compram o amor, gastam rios de tinta com o amor, milhões de gigabites de imagens com o amor, milhões de filmes, de textos, de livros, de peças de teatro, de clips, de poemas ruins sobre o amor


Eeeeeeiiiiiiiiaaaaaa! Eiiiiaaaaôôôôô!

Eeeeeeêêêiiiiiiiiiiiiiaaaaááááááááááôôôôôôôôôô!


O amor é vermelho
Você já parou para pensar porque o amor é vermelho?
Porque o amor não é azul, ou amarelo, ou branco como as núvens que eu vejo agora no céu emboladas numa cópula sem fim?

O amor é vermelho

Não vou mais cantar o vermelho
O vermelho é bonito, é forte, é intenso
mas não quero mais cantar o vermelho

Porque o amor é vermelho o Mac Donald é vermelho
a Coca Cola é vermelha e a China é vermelha
o natal é vermelho e o sangue escorrendo no meu lábio é vermelho
o sinal de pare é vermelho e o psicopata do bombeiro é vermelho
o batom é vermelho e o olhar assassino do cão é vermelho

Eu me enjoei do vermelho, não aguento mais
pra todo lado tem vermelho e eu vomito sobre o vermelho
eu, que construí impérios sobre o vermelho
eu, que mudei a paisagem pintando ela de vermelho
eu, que refiz a paisagem da vida toda em vermelho
não quero mais saber do vermelho


Em uma cidade não muito distante
num tempo que não cabe no centro
um império vermelho se revelou um engodo
o vermelho era apenas aparência, mesmo que muitos não vissem assim
demorou para o falso mostrar-se verdadeiro, demorou para a mentira mostrar-se real
o vermelho acabou sendo outro, outra cor, outro sentido
engodo e decepção
Tudo acabou em desastre


Quando o vermelho não é vermelho
o fim é brutal

Também por isso, hoje eu grito: Chega de vermelho!
O vermelho é cor do diabo, do papai-noel e da ferrari
O mal, a estupidez e a arrogância são vermelhas


Posso cravar um punhal no vermelho e ver sangrar
rios de sangue vermelho escorrendo
feito jugular cortada à navalha espirrando vermelho em todo o cenário
Posso pegar um machado e cortar o vermelho
abater o vermelho a machadadas violentas e certeiras
até derrubar o vermelho frondoso em toda a sua extensão e brutalidade


Sei

Um homem que queira sobreviver humano precisa preservar o vermelho
cuidar de cada tom de vermelho, analisar suas variantes
olhar através do vermelho o raiar do dia


Um homem, quando põe o lixo pra fora, precisa prestar atenção no vermelho
Nenhum vermelho pode ser posto pra fora
Quando o vermelho vai parar no lixo é o amor que vai embora misturado nos restos e rejeitos


Um homem não pode abandonar o vermelho totalmente porque ele o tem
todo o seu sangue é vermelho e é o sangue quem movimenta a alma e o amor


Por isso, é preciso suportar o vermelho
Eu sei


Mas veja só, cansei, cansei, cansei do vermelho
O vermelho é perigoso
É preciso ter muito cuidado com ele
pode esquentar, pode pegar fogo, pode arder em chamas



Todo vermelho é perigoso
Não tem o perigo do aço azul ou o sabor da lâmina prata, mas é pior
é o perigo da cor que se impõe no cérebro, a cor que inunda os neurônios com a força
A cor que faz com que o vermelho transforme todos os pensamentos e grite:
sob o vermelho é matar ou morrer!


Não
Não vou mais cantar o amor
As ruas da minha cidade vão sentir saudades do meu canto
As esquinas vão chorar querendo ouvir a voz do amor
Os quartos vão amargar o esquecimento na memória dos amantes que nunca mais vão lembrar que eles existem


Não vou mais cantar o amor
O amor é curvo e vibrante e eu resolvi banir as curvas e vibrações de todo o meu ser
A partir de agora serei reto e constante como uma autoestrada de alta velocidade


Meu coração
não vai mais bater, nem pulsar


Meu coração
será uma constante retilínea uniforme no mapa dos exames cardiológicos de rotina
Ninguém mais vai ouvir meu peito porque não vai haver nada para ouvir a não ser o som do silêncio permanente
ninguém mais vai ouvir um suspiro meu porque não vou mais suspirar e nunca mais vou suspirar porque
definitivamente
                nunca mais vou cantar o amor



Minha cidade está se erguendo em forma de aço e cimento por todos os lados
Todos os dias temos uma novidade,
todos os dias cimento e aço matam o amor numa quadra da minha cidade
se erguem num assalto aos céus, devoram o horizonte, engolem o sol e a paisagem
Os jacarandás da minha cidade já estão pálidos e morrem um a um na selva de cimento e aço azul


Não!
Não fui eu quem matou o amor
O amor morreu em minha cidade sufocado
Morreu nas esquinas, morreu nos bares, morreu nos quartos soterrado em poluição e tosse
O amor morreu sem saber o motivo
Cimento e aço foram ocupando os céus, engolindo o sol e sufocando as luas
Nenhuma delas sobreviveu ao avanço do aço azul e do cimento cinza



Em minha cidade, o cimento frio e o aço brilhante são como ervas daninhas que matam o amor todos os dias
Agora, a minha esquerda, um arranha céu de dezoito andares se ergue roubando a paisagem e o amor
Em meu bairro, os arranha céus têm se erguido um atrás do outro
e todos, absolutamente todos, tem o objetivo único
de matar o amor



Esse prédio
Eu odeio esse prédio
custa cinco mil dólares o metro quadrado deste prédio
eu odeio quem vai ocupar esse prédio
ele se ergue todos os dias matando o horizonte à minha esquerda
é o amor à minha esquerda que morre todos os dias quando este prédio se ergue
é o amor que morre no lado esquerdo do meu coração


Em minha cidade
os prédios crescem para atender a sede e o ódio daqueles que são contra o amor
e os operários em construção agora são assassinos do amor
são quem põe a argamassa, quem organiza tijolo sobre tijolo
são eles que devoram os céus e a luz do sol, são eles quem desviam os ventos do amor


Em minha cidade
a escassez de horizonte se impõe junto com a ausência de amor
Em minha cidade
cada prédio que se ergue é um túmulo do amor


Não
Não vou mais cantar o amor
O amor é coisa do passado, daqueles que acreditavam no inacreditável, dos sonhadores, dos crédulos
O mundo hoje é do aço e do concreto, e o amor se compra barato e se vende em rede
O que são cinco mil dólares?


Não
O amor não merece mais meu canto, meu sofrer, meu sonhar
O amor se foi


Não
Não vou mais cantar o amor
O amor sempre foi encontro e minha cidade hoje é só desencontro
Ninguém consegue chegar, ninguém consegue ir, ninguém consegue vir
Os cruzamentos em minha cidade não acontecem
Não há mais quem consiga encontrar o amor
não porque não queira
mas porque não consegue


Em minha cidade não existe nenhum ônibus capaz de levar até ao amor
Em minha cidade, nas esquinas
não acontece nenhum beijo, só acidentes com morte


Um dia um tatu gigante vai furar as entranhas da minha cidade
um trem de lata vai ligar o sul e o norte
mas não vai levar ao amor
Não haverá uma estação do amor
O amor não brota de um buraco do metrô



Eeeeeiiiiaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhh!
Chega!
Chegaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhh!


Já disse!
Não vou mais cantar o amor
O amor não merece um grito, nem mesmo um sussurro
O amor agora é descartável como uma embalagem
como um produto vítima da obsolescência
programada



Obey!
Não vou mais cantar o amor!

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Amor Noturno

Acordei no meio da noite
dei um salto da cama tão rápido e forte que por um momento
flutuei fora do meu próprio corpo

                                descobri que amo 
minhas ex-mulheres
perdidamente, igualmente, subitamente, irreversivelmente


Meu coração acelerado, minha respiração alterada, meu cérebro nervoso
e minhas ex-mulheres todas ali, difíceis e amorosas


Depois de minhas ex-esposas vieram a minha mente quase ex-esposas
namoradas difíceis, paixões loucas
e minha mulher comigo, quase com ciúmes


Isto está péssimo...


Tirando as ex-mulheres, isto está péssimo...


Minhas mulheres não merecem um poema ruim
uma lápide, um verso triste e pobre

As quatro da manhã descobri que eu amo a todas as minhas ex-mulheres
e nunca deixei de amar
As quatro da manhã estou tenso como um leão de fogo segundos antes
de abater o antílope
As quatro da manhã sou um homem sufocado de amor e buscando ar
como se o ar faltasse em cada célula


Sinto os pés no chão, tomo um copo d'água, circulo pelo apartamento
Respiro, aspiro, espiro, respiro
Não acordo ninguém para que não me vejam com cara de louco, de desatinado, de insano
Da janela da sala consigo ver a lua serena e alta, porque alta vive
Fico ali minutos, muitos minutos, intermináveis
O ar molhado da madrugada resfria minhas entranhas


Já organizo os pensamentos com dificuldade
enquanto meu coração inteiro ainda dá saltos entre as costelas
Sou um homem de sorte. Consigo amar todas as minhas ex-mulheres. Não tenho, nunca tive, ódio no coração. Todo amor sem limites é para sempre. 


As cinco da manhã, enfim, me sinto feliz, em paz com todas as minhas mulheres.
Disposto a amar através do tempo, volto a dormir. 


No meu pensamento, minha mulher sorri, sabedora do meu amor invencível.

sexta-feira, 15 de março de 2013

London, London


Em Londres, um vento gelado atravessou meu cérebro de orelha a orelha
Apresentado aos reis e rainhas em Westminster soube onde foi parar muito do ouro 
       arrancado das entranhas da minha América
Não chega a causar espanto ver tanta prata, tanto ouro e tamanho poder concentrado
       em palácios e igrejas
Nós também já tivemos nossos reis. Sabemos da sua utilidade e nos desfizemos deles, 
       ainda que tenhamos mantido muito do seu despotismo

Não consegui dormir em Londres com medo do inimigo dentro de cada inglês
Tive tremores e calafrios. Cheguei a pensar que bruxas e druidas haviam se somado para
       me aniquilar
É que eu sou um camponês do sul do mundo, fugitivo da peste e da servidão – e não devia 
       ter ido ali sem armadura e espada, sem proteção especial de São Jorge

Madrugada a dentro em Londres, atolei em suor e sonhos de uma alma devastada num 
       travesseiro de penas de ganso reproduzido em cativeiro
Uma hora após outra na noite interminável caminhei um corredor de ferro enferrujado em 
       busca do amanhecer que nunca chega aos que estão em frente ao espelho azul do horizonte sólido
Quando o cinza escuro da noite cedeu espaço ao cinza claro do dia, eu tinha derrotado
       centenas de ingleses e pude sentir em cada célula do meu corpo como o tempo é
       frio nas margens do Tamisa

Ah! Saibam todos e por todo o sempre! Saibam com toda certeza!
No inverno interminável de Londres sobrevivem árvores tristes e retorcidas pela dor do frio na 
       eternidade do vento oceânico
Como as casas acinzentadas, as raízes cinzentas e duras se agarram à paisagem e 
       impõem sua norma de sofrimento ao olhar
Cada tijolo de Londres tem uma história de lágrimas, cada bloco de pedra nu na imagem 
       sólida tem uma dor, cada tijolo frio pesa como um tijolo
Cada galho retorcido, cada folha ausente, cada raiz na terra fria e escura, cada palavra 
       perdida, cada pedaço de tristeza, cada gesto contido, cada depressão do olhar dilacera
Tudo, tudo em Londres dilacera a alma e derrama cinzas
       sobre os olhos

Não! Eu não teria um filho em Londres!
Em Londres, latinos, indianos, negros, russos – todos são ingleses
Como duas senhoras inglesas de olhos azuis comendo um prato de canjica amarela e 
       pondo os assuntos em dia num restaurante do Teatro The CUT na Union Street em 
       South Wark
Não. Eu não suportaria a frieza, a rigidez dos gestos, o controle permanente do olhar
Não poderia manter esse ar distante que faz com que um metrô lotado pareça repleto
       de londrinos únicos que parecem estar sozinhos o tempo todo e desconhecem a
       existência de todos os demais
Uma coisa impressionante, porque é como se cada um estivesse só
       e na verdade é isso:
Cada londrino é um ser só.
Londres é habitada por humanos solitários.

Trouxe um galo de Londres – um galo de olhos negros cintilantes e penas cinzentas 
       escuras como a noite – um galo que, quando olhei nos seus olhos, percebi logo ser a 
       mais pura criação de Londres

Em Londres eu aprendi o que já devia saber – anda pela sombra quem tem medo do sol – 
       faz pela vida quem cuida dos seus
Tanta tristeza exige manter o coração aquecido.

Por isso, não pare, não deixe o vento gélido chegar ao seu coração. Proteja o seu coração.
Esse é o segredo.
Esse é o caminho.
Aqueça o seu coração. 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Perna fraca


Todo ano e todo mês.
Primavera e verão.
Outono e inverno.
Todo ano e todo mês.
Sem aviso prévio.
Sem comunicado.
Sem dizer adeus.
Sem permissão.
Sem poder dizer
tudo
o que ficou por dizer...

Agora
estou com uma perna que não me ajuda
perna fraca
perna que me levava aonde eu queria e agora me leva
aonde quer
Perna contraditória não é de hoje
por causa dela nunca consegui ser bom no futebol
Perna que garantiu minha força ideológica
minha certeza, meu amor testemunhal
Um dia pensei, mas logo desisti,
é tão injusta a consciência no lado sul do mundo
Neste hemisfério desgraçado sofro de muitas dores
falamos em vão para platéias e microfones
vemos morrer nossas mulheres sempre calados
e não sabemos direito o que fazer para salvar o mundo
Mas não me conformo com isso
Não me conformo com a tristeza de hoje em diante
e sempre

Vendo morrer uma a uma as mulheres de minhas vidas
sei, certeza certa, que não cederei à tristeza
grudarei um sorriso na boca e direi sempre
às mulheres que crescem no jardim das tardes
no quintal das casas e nas sacadas celestiais
vale a pena viver mesmo que  seja um dia
vale a pena amar mesmo que seja eu
vale viver pelas mulheres
vale a pena viver pelas mulheres
da minha vida