Eiiiiia! Eeeeeeiiiiiiiiaaaaaa!
Eiiiiaaaaôôôôô!
Não vou mais cantar o amor!
Chega!
Eu disse chega!
O amor qualquer um canta
os rotos, os cegos, os de voz rouca e torta
abrem a boca e cantam o amor
os do norte e os do sul,
os que saem à noite angustiados procurando os bares e ofertando sua alma no mercado das ilusões
os anões de circo, os homens de terno e gravata
as mulheres lindas e as mulheres feias cantam o amor
o vendedor de rosas vermelhas na noite dos enamorados e os malandros antiquados
cantam o amor
as velhas, as que não sabem o que é um beijo na omoplata cantam o amor
até as pedras verdes e as pedras cinzas
cantam o amor
Os ricos ficam mais ricos cantando o amor
os pobres empobrecem cantando o amor
os maiores cafajestes que conheci cantam o amor
os que perderam a perna na infância, os drogados de anfetaminas e álcool cantam o amor
os infectados de hiv, os loucos, os desajustados de toda a cidade
os que vivem na outra margem e nunca sentem o calor do sol em suas mãos
os porteiros sonolentos nas madrugadas tremendo de medo, os guardas armados e ansiosos para matar um preto pobre, os assaltantes de bancos, as prostitutas, os donos de bar cantam o amor
O amor qualquer um pode cantar
basta ter voz
e sem ter voz
basta esboçar um som
e sem ter som basta escrever
e cantar o amor
O analfabeto
o lavador de carros da minha rua
a psicóloga metida a besta e mal humorada
o barman atrolhado de serviço e problemas de abastecimento
a dona da loja fashion e loura
a gostosa do andar de baixo
o dono do Ocidente
o judeu do Oriente
qualquer um canta o amor
O amor é a coisa mais desejada de todas
Não é o dinheiro, não é o poder
Não
Não é a felicidade
O que todos querem mesmo
é o amor
Por isso, gostam tanto de ouvir falar sobre o amor
Por isso, tecem loas ao amor, compram o amor, gastam rios de tinta com o amor, milhões de gigabites de imagens com o amor, milhões de filmes, de textos, de livros, de peças de teatro, de clips, de poemas ruins sobre o amor
Eeeeeeiiiiiiiiaaaaaa! Eiiiiaaaaôôôôô!
Eeeeeeêêêiiiiiiiiiiiiiaaaaááááááááááôôôôôôôôôô!
O amor é vermelho
Você já parou para pensar porque o amor é vermelho?
Porque o amor não é azul, ou amarelo, ou branco como as núvens que eu vejo agora no céu emboladas numa cópula sem fim?
O amor é vermelho
Não vou mais cantar o vermelho
O vermelho é bonito, é forte, é intenso
mas não quero mais cantar o vermelho
Porque o amor é vermelho o Mac Donald é vermelho
a Coca Cola é vermelha e a China é vermelha
o natal é vermelho e o sangue escorrendo no meu lábio é vermelho
o sinal de pare é vermelho e o psicopata do bombeiro é vermelho
o batom é vermelho e o olhar assassino do cão é vermelho
Eu me enjoei do vermelho, não aguento mais
pra todo lado tem vermelho e eu vomito sobre o vermelho
eu, que construí impérios sobre o vermelho
eu, que mudei a paisagem pintando ela de vermelho
eu, que refiz a paisagem da vida toda em vermelho
não quero mais saber do vermelho
Em uma cidade não muito distante
num tempo que não cabe no centro
um império vermelho se revelou um engodo
o vermelho era apenas aparência, mesmo que muitos não vissem assim
demorou para o falso mostrar-se verdadeiro, demorou para a mentira mostrar-se real
o vermelho acabou sendo outro, outra cor, outro sentido
engodo e decepção
Tudo acabou em desastre
Quando o vermelho não é vermelho
o fim é brutal
Também por isso, hoje eu grito: Chega de vermelho!
O vermelho é cor do diabo, do papai-noel e da ferrari
O mal, a estupidez e a arrogância são vermelhas
Posso cravar um punhal no vermelho e ver sangrar
rios de sangue vermelho escorrendo
feito jugular cortada à navalha espirrando vermelho em todo o cenário
Posso pegar um machado e cortar o vermelho
abater o vermelho a machadadas violentas e certeiras
até derrubar o vermelho frondoso em toda a sua extensão e brutalidade
Sei
Um homem que queira sobreviver humano precisa preservar o vermelho
cuidar de cada tom de vermelho, analisar suas variantes
olhar através do vermelho o raiar do dia
Um homem, quando põe o lixo pra fora, precisa prestar atenção no vermelho
Nenhum vermelho pode ser posto pra fora
Quando o vermelho vai parar no lixo é o amor que vai embora misturado nos restos e rejeitos
Um homem não pode abandonar o vermelho totalmente porque ele o tem
todo o seu sangue é vermelho e é o sangue quem movimenta a alma e o amor
Por isso, é preciso suportar o vermelho
Eu sei
Mas veja só, cansei, cansei, cansei do vermelho
O vermelho é perigoso
É preciso ter muito cuidado com ele
pode esquentar, pode pegar fogo, pode arder em chamas
Todo vermelho é perigoso
Não tem o perigo do aço azul ou o sabor da lâmina prata, mas é pior
é o perigo da cor que se impõe no cérebro, a cor que inunda os neurônios com a força
A cor que faz com que o vermelho transforme todos os pensamentos e grite:
sob o vermelho é matar ou morrer!
Não
Não vou mais cantar o amor
As ruas da minha cidade vão sentir saudades do meu canto
As esquinas vão chorar querendo ouvir a voz do amor
Os quartos vão amargar o esquecimento na memória dos amantes que nunca mais vão lembrar que eles existem
Não vou mais cantar o amor
O amor é curvo e vibrante e eu resolvi banir as curvas e vibrações de todo o meu ser
A partir de agora serei reto e constante como uma autoestrada de alta velocidade
Meu coração
não vai mais bater, nem pulsar
Meu coração
será uma constante retilínea uniforme no mapa dos exames cardiológicos de rotina
Ninguém mais vai ouvir meu peito porque não vai haver nada para ouvir a não ser o som do silêncio permanente
ninguém mais vai ouvir um suspiro meu porque não vou mais suspirar e nunca mais vou suspirar porque
definitivamente
nunca mais vou cantar o amor
Minha cidade está se erguendo em forma de aço e cimento por todos os lados
Todos os dias temos uma novidade,
todos os dias cimento e aço matam o amor numa quadra da minha cidade
se erguem num assalto aos céus, devoram o horizonte, engolem o sol e a paisagem
Os jacarandás da minha cidade já estão pálidos e morrem um a um na selva de cimento e aço azul
Não!
Não fui eu quem matou o amor
O amor morreu em minha cidade sufocado
Morreu nas esquinas, morreu nos bares, morreu nos quartos soterrado em poluição e tosse
O amor morreu sem saber o motivo
Cimento e aço foram ocupando os céus, engolindo o sol e sufocando as luas
Nenhuma delas sobreviveu ao avanço do aço azul e do cimento cinza
Em minha cidade, o cimento frio e o aço brilhante são como ervas daninhas que matam o amor todos os dias
Agora, a minha esquerda, um arranha céu de dezoito andares se ergue roubando a paisagem e o amor
Em meu bairro, os arranha céus têm se erguido um atrás do outro
e todos, absolutamente todos, tem o objetivo único
de matar o amor
Esse prédio
Eu odeio esse prédio
custa cinco mil dólares o metro quadrado deste prédio
eu odeio quem vai ocupar esse prédio
ele se ergue todos os dias matando o horizonte à minha esquerda
é o amor à minha esquerda que morre todos os dias quando este prédio se ergue
é o amor que morre no lado esquerdo do meu coração
Em minha cidade
os prédios crescem para atender a sede e o ódio daqueles que são contra o amor
e os operários em construção agora são assassinos do amor
são quem põe a argamassa, quem organiza tijolo sobre tijolo
são eles que devoram os céus e a luz do sol, são eles quem desviam os ventos do amor
Em minha cidade
a escassez de horizonte se impõe junto com a ausência de amor
Em minha cidade
cada prédio que se ergue é um túmulo do amor
Não
Não vou mais cantar o amor
O amor é coisa do passado, daqueles que acreditavam no inacreditável, dos sonhadores, dos crédulos
O mundo hoje é do aço e do concreto, e o amor se compra barato e se vende em rede
O que são cinco mil dólares?
Não
O amor não merece mais meu canto, meu sofrer, meu sonhar
O amor se foi
Não
Não vou mais cantar o amor
O amor sempre foi encontro e minha cidade hoje é só desencontro
Ninguém consegue chegar, ninguém consegue ir, ninguém consegue vir
Os cruzamentos em minha cidade não acontecem
Não há mais quem consiga encontrar o amor
não porque não queira
mas porque não consegue
Em minha cidade não existe nenhum ônibus capaz de levar até ao amor
Em minha cidade, nas esquinas
não acontece nenhum beijo, só acidentes com morte
Um dia um tatu gigante vai furar as entranhas da minha cidade
um trem de lata vai ligar o sul e o norte
mas não vai levar ao amor
Não haverá uma estação do amor
O amor não brota de um buraco do metrô
Eeeeeiiiiaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhh!
Chega!
Chegaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhh!
Já disse!
Não vou mais cantar o amor
O amor não merece um grito, nem mesmo um sussurro
O amor agora é descartável como uma embalagem
como um produto vítima da obsolescência
programada
Obey!
Não vou mais cantar o amor!