quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O tempo dos cabeças podres



O tempo corre rápido por aqui
Tudo é começo e final
Vida e morte na mesma estação


Obreiros da grande obra
Temos horizonte aos nossos pés
Chão de terra e sangue e lodo

Na guerra dos mundos
O inimigo abriu caminho
Rompeu as portas das cabeças podres
Se instalou no centro geral

Veio tudo, veio rude
Destruição e fome
Ódio em ondas de ódio
Rancor, medo e morte
Brutalidade no ar das noites
Estupidez no café das manhãs

O tempo escorre e voa por aqui
Não temos nada a perder
Soldados do juízo final
Vamos à guerra
Com brilho
No olhar

quarta-feira, 18 de abril de 2018

THEODORA


Fiquei com Theodora ao meu lado noites seguidas em Budapeste
Nossa atração foi fulminante
Theodora azul celeste
Em contraste com um vermelho escuro a lhe vestir
Vermelho quase sangue coagulado
provido de força e intensidade

Tudo, com Theodora, aconteceu de repente
Theodora, com todas as suas contradições, foi pra mim uma dádiva imperial, divina

Primeiro nos vimos no Prima Market, a uma quadra da Basílica
Mário me ajudou a levá-la até o quinto andar do edifício na Zichy Utca
Para um apartamento destes que ficam no teto dos prédios
Feitos para serem moradia de serviçais que não existem mais faz tempo
E hoje são alugados pelo airbnb para turistas pobres como eu

Para subir, tinha um elevador que parecia saído de um filme soviético
Mas Theodora não disse nada, não reclamou, não mostrou surpresa
Não deu mostras de estranhamento por estar num ambiente tão plebeu

A esta altura, aos meus olhos, Theodora parecia perfeita
Nobre e simples, transparente e forte

Depois da primeira impressão, minha Kékkúti mostrou-se um pouco amarga
Carregada de sais, um pouco aerada e com porte de imperatriz bizantina
Bebi Theodora aos poucos, noite após noite,

Nas madrugadas frias e brancas de neve
Em minha boca sedenta, Theodora aparecia doce e delicada
Irrigava meus sonhos mais intensos e me enchia de vida

Theodora foi pra mim um presente dos deuses
E fez cada uma daquelas noites de neve e frio
uma lembrança inesquecível de Budapeste.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O que importa

Toda vida agora vale a pena
Toda vida agora corre seu  curso num rio violento e forte

Talvez porque eu não soubesse 
Talvez porque eu não pudesse saber disso
Talvez porque eu não prestasse atenção aos detalhes 
      do sangue grudado nas paredes da memória
Talvez porque eu não tivesse ainda o terceiro olho que vê além da superfície
Acabei vivendo muito tempo sem ter as certezas que tenho agora 

Morrer já não faz tanta diferença 
      como fazia quando estávamos naquela margem da vida
O que faz diferença agora 
      é sentir cada cada nervo do teu corpo vergar de prazer
É ver teu olho verde brilhar verde 
Como chama brilhante, alegre, feliz
É ver teu sorriso abrindo iluminado 
      pela luz mais pura das manhãs da minha infância

Morrer já não faz tanta diferença
Quando o tempo curva em horas de dor e o que nos mantem é a vermelha esperança
Morrer já não faz tanta diferença
Porque agora é tempo de construir sonhos e tudo o que ficar será bem feito
Morrer já não faz tanta diferença
Porque amar é dever 
do juízo final

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Não vou mais cantar o amor



Eiiiiia! Eeeeeeiiiiiiiiaaaaaa!
Eiiiiaaaaôôôôô!


Não vou mais cantar o amor!


Chega!
Eu disse chega!


O amor qualquer um canta
os rotos, os cegos, os de voz rouca e torta
abrem a boca e cantam o amor
os do norte e os do sul,
os que saem à noite angustiados procurando os bares e ofertando sua alma no mercado das ilusões
os anões de circo, os homens de terno e gravata
as mulheres lindas e as mulheres feias cantam o amor
o vendedor de rosas vermelhas na noite dos enamorados e os malandros antiquados
cantam o amor


as velhas, as que não sabem o que é um beijo na omoplata cantam o amor
até as pedras verdes e as pedras cinzas
cantam o amor

Os ricos ficam mais ricos cantando o amor
os pobres empobrecem cantando o amor
os maiores cafajestes que conheci cantam o amor
os que perderam a perna na infância, os drogados de anfetaminas e álcool cantam o amor
os infectados de hiv, os loucos, os desajustados de toda a cidade
os que vivem na outra margem e nunca sentem o calor do sol em suas mãos
os porteiros sonolentos nas madrugadas tremendo de medo, os guardas armados e ansiosos para matar um preto pobre, os assaltantes de bancos, as prostitutas, os donos de bar cantam o amor


O amor qualquer um pode cantar
basta ter voz
e sem ter voz
basta esboçar um som
e sem ter som basta escrever
e cantar o amor

O analfabeto
o lavador de carros da minha rua
a psicóloga metida a besta e mal humorada
o barman atrolhado de serviço e problemas de abastecimento
a dona da loja fashion e loura
a gostosa do andar de baixo
o dono do Ocidente
o judeu do Oriente

qualquer um canta o amor

O amor é a coisa mais desejada de todas
Não é o dinheiro, não é o poder
Não
Não é a felicidade
O que todos querem mesmo
é o amor


Por isso, gostam tanto de ouvir falar sobre o amor
Por isso, tecem loas ao amor, compram o amor, gastam rios de tinta com o amor, milhões de gigabites de imagens com o amor, milhões de filmes, de textos, de livros, de peças de teatro, de clips, de poemas ruins sobre o amor


Eeeeeeiiiiiiiiaaaaaa! Eiiiiaaaaôôôôô!

Eeeeeeêêêiiiiiiiiiiiiiaaaaááááááááááôôôôôôôôôô!


O amor é vermelho
Você já parou para pensar porque o amor é vermelho?
Porque o amor não é azul, ou amarelo, ou branco como as núvens que eu vejo agora no céu emboladas numa cópula sem fim?

O amor é vermelho

Não vou mais cantar o vermelho
O vermelho é bonito, é forte, é intenso
mas não quero mais cantar o vermelho

Porque o amor é vermelho o Mac Donald é vermelho
a Coca Cola é vermelha e a China é vermelha
o natal é vermelho e o sangue escorrendo no meu lábio é vermelho
o sinal de pare é vermelho e o psicopata do bombeiro é vermelho
o batom é vermelho e o olhar assassino do cão é vermelho

Eu me enjoei do vermelho, não aguento mais
pra todo lado tem vermelho e eu vomito sobre o vermelho
eu, que construí impérios sobre o vermelho
eu, que mudei a paisagem pintando ela de vermelho
eu, que refiz a paisagem da vida toda em vermelho
não quero mais saber do vermelho


Em uma cidade não muito distante
num tempo que não cabe no centro
um império vermelho se revelou um engodo
o vermelho era apenas aparência, mesmo que muitos não vissem assim
demorou para o falso mostrar-se verdadeiro, demorou para a mentira mostrar-se real
o vermelho acabou sendo outro, outra cor, outro sentido
engodo e decepção
Tudo acabou em desastre


Quando o vermelho não é vermelho
o fim é brutal

Também por isso, hoje eu grito: Chega de vermelho!
O vermelho é cor do diabo, do papai-noel e da ferrari
O mal, a estupidez e a arrogância são vermelhas


Posso cravar um punhal no vermelho e ver sangrar
rios de sangue vermelho escorrendo
feito jugular cortada à navalha espirrando vermelho em todo o cenário
Posso pegar um machado e cortar o vermelho
abater o vermelho a machadadas violentas e certeiras
até derrubar o vermelho frondoso em toda a sua extensão e brutalidade


Sei

Um homem que queira sobreviver humano precisa preservar o vermelho
cuidar de cada tom de vermelho, analisar suas variantes
olhar através do vermelho o raiar do dia


Um homem, quando põe o lixo pra fora, precisa prestar atenção no vermelho
Nenhum vermelho pode ser posto pra fora
Quando o vermelho vai parar no lixo é o amor que vai embora misturado nos restos e rejeitos


Um homem não pode abandonar o vermelho totalmente porque ele o tem
todo o seu sangue é vermelho e é o sangue quem movimenta a alma e o amor


Por isso, é preciso suportar o vermelho
Eu sei


Mas veja só, cansei, cansei, cansei do vermelho
O vermelho é perigoso
É preciso ter muito cuidado com ele
pode esquentar, pode pegar fogo, pode arder em chamas



Todo vermelho é perigoso
Não tem o perigo do aço azul ou o sabor da lâmina prata, mas é pior
é o perigo da cor que se impõe no cérebro, a cor que inunda os neurônios com a força
A cor que faz com que o vermelho transforme todos os pensamentos e grite:
sob o vermelho é matar ou morrer!


Não
Não vou mais cantar o amor
As ruas da minha cidade vão sentir saudades do meu canto
As esquinas vão chorar querendo ouvir a voz do amor
Os quartos vão amargar o esquecimento na memória dos amantes que nunca mais vão lembrar que eles existem


Não vou mais cantar o amor
O amor é curvo e vibrante e eu resolvi banir as curvas e vibrações de todo o meu ser
A partir de agora serei reto e constante como uma autoestrada de alta velocidade


Meu coração
não vai mais bater, nem pulsar


Meu coração
será uma constante retilínea uniforme no mapa dos exames cardiológicos de rotina
Ninguém mais vai ouvir meu peito porque não vai haver nada para ouvir a não ser o som do silêncio permanente
ninguém mais vai ouvir um suspiro meu porque não vou mais suspirar e nunca mais vou suspirar porque
definitivamente
                nunca mais vou cantar o amor



Minha cidade está se erguendo em forma de aço e cimento por todos os lados
Todos os dias temos uma novidade,
todos os dias cimento e aço matam o amor numa quadra da minha cidade
se erguem num assalto aos céus, devoram o horizonte, engolem o sol e a paisagem
Os jacarandás da minha cidade já estão pálidos e morrem um a um na selva de cimento e aço azul


Não!
Não fui eu quem matou o amor
O amor morreu em minha cidade sufocado
Morreu nas esquinas, morreu nos bares, morreu nos quartos soterrado em poluição e tosse
O amor morreu sem saber o motivo
Cimento e aço foram ocupando os céus, engolindo o sol e sufocando as luas
Nenhuma delas sobreviveu ao avanço do aço azul e do cimento cinza



Em minha cidade, o cimento frio e o aço brilhante são como ervas daninhas que matam o amor todos os dias
Agora, a minha esquerda, um arranha céu de dezoito andares se ergue roubando a paisagem e o amor
Em meu bairro, os arranha céus têm se erguido um atrás do outro
e todos, absolutamente todos, tem o objetivo único
de matar o amor



Esse prédio
Eu odeio esse prédio
custa cinco mil dólares o metro quadrado deste prédio
eu odeio quem vai ocupar esse prédio
ele se ergue todos os dias matando o horizonte à minha esquerda
é o amor à minha esquerda que morre todos os dias quando este prédio se ergue
é o amor que morre no lado esquerdo do meu coração


Em minha cidade
os prédios crescem para atender a sede e o ódio daqueles que são contra o amor
e os operários em construção agora são assassinos do amor
são quem põe a argamassa, quem organiza tijolo sobre tijolo
são eles que devoram os céus e a luz do sol, são eles quem desviam os ventos do amor


Em minha cidade
a escassez de horizonte se impõe junto com a ausência de amor
Em minha cidade
cada prédio que se ergue é um túmulo do amor


Não
Não vou mais cantar o amor
O amor é coisa do passado, daqueles que acreditavam no inacreditável, dos sonhadores, dos crédulos
O mundo hoje é do aço e do concreto, e o amor se compra barato e se vende em rede
O que são cinco mil dólares?


Não
O amor não merece mais meu canto, meu sofrer, meu sonhar
O amor se foi


Não
Não vou mais cantar o amor
O amor sempre foi encontro e minha cidade hoje é só desencontro
Ninguém consegue chegar, ninguém consegue ir, ninguém consegue vir
Os cruzamentos em minha cidade não acontecem
Não há mais quem consiga encontrar o amor
não porque não queira
mas porque não consegue


Em minha cidade não existe nenhum ônibus capaz de levar até ao amor
Em minha cidade, nas esquinas
não acontece nenhum beijo, só acidentes com morte


Um dia um tatu gigante vai furar as entranhas da minha cidade
um trem de lata vai ligar o sul e o norte
mas não vai levar ao amor
Não haverá uma estação do amor
O amor não brota de um buraco do metrô



Eeeeeiiiiaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhh!
Chega!
Chegaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhh!


Já disse!
Não vou mais cantar o amor
O amor não merece um grito, nem mesmo um sussurro
O amor agora é descartável como uma embalagem
como um produto vítima da obsolescência
programada



Obey!
Não vou mais cantar o amor!

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Amor Noturno

Acordei no meio da noite
dei um salto da cama tão rápido e forte que por um momento
flutuei fora do meu próprio corpo

                                descobri que amo 
minhas ex-mulheres
perdidamente, igualmente, subitamente, irreversivelmente


Meu coração acelerado, minha respiração alterada, meu cérebro nervoso
e minhas ex-mulheres todas ali, difíceis e amorosas


Depois de minhas ex-esposas vieram a minha mente quase ex-esposas
namoradas difíceis, paixões loucas
e minha mulher comigo, quase com ciúmes


Isto está péssimo...


Tirando as ex-mulheres, isto está péssimo...


Minhas mulheres não merecem um poema ruim
uma lápide, um verso triste e pobre

As quatro da manhã descobri que eu amo a todas as minhas ex-mulheres
e nunca deixei de amar
As quatro da manhã estou tenso como um leão de fogo segundos antes
de abater o antílope
As quatro da manhã sou um homem sufocado de amor e buscando ar
como se o ar faltasse em cada célula


Sinto os pés no chão, tomo um copo d'água, circulo pelo apartamento
Respiro, aspiro, espiro, respiro
Não acordo ninguém para que não me vejam com cara de louco, de desatinado, de insano
Da janela da sala consigo ver a lua serena e alta, porque alta vive
Fico ali minutos, muitos minutos, intermináveis
O ar molhado da madrugada resfria minhas entranhas


Já organizo os pensamentos com dificuldade
enquanto meu coração inteiro ainda dá saltos entre as costelas
Sou um homem de sorte. Consigo amar todas as minhas ex-mulheres. Não tenho, nunca tive, ódio no coração. Todo amor sem limites é para sempre. 


As cinco da manhã, enfim, me sinto feliz, em paz com todas as minhas mulheres.
Disposto a amar através do tempo, volto a dormir. 


No meu pensamento, minha mulher sorri, sabedora do meu amor invencível.

sexta-feira, 15 de março de 2013

London, London


Em Londres, um vento gelado atravessou meu cérebro de orelha a orelha
Apresentado aos reis e rainhas em Westminster soube onde foi parar muito do ouro 
       arrancado das entranhas da minha América
Não chega a causar espanto ver tanta prata, tanto ouro e tamanho poder concentrado
       em palácios e igrejas
Nós também já tivemos nossos reis. Sabemos da sua utilidade e nos desfizemos deles, 
       ainda que tenhamos mantido muito do seu despotismo

Não consegui dormir em Londres com medo do inimigo dentro de cada inglês
Tive tremores e calafrios. Cheguei a pensar que bruxas e druidas haviam se somado para
       me aniquilar
É que eu sou um camponês do sul do mundo, fugitivo da peste e da servidão – e não devia 
       ter ido ali sem armadura e espada, sem proteção especial de São Jorge

Madrugada a dentro em Londres, atolei em suor e sonhos de uma alma devastada num 
       travesseiro de penas de ganso reproduzido em cativeiro
Uma hora após outra na noite interminável caminhei um corredor de ferro enferrujado em 
       busca do amanhecer que nunca chega aos que estão em frente ao espelho azul do horizonte sólido
Quando o cinza escuro da noite cedeu espaço ao cinza claro do dia, eu tinha derrotado
       centenas de ingleses e pude sentir em cada célula do meu corpo como o tempo é
       frio nas margens do Tamisa

Ah! Saibam todos e por todo o sempre! Saibam com toda certeza!
No inverno interminável de Londres sobrevivem árvores tristes e retorcidas pela dor do frio na 
       eternidade do vento oceânico
Como as casas acinzentadas, as raízes cinzentas e duras se agarram à paisagem e 
       impõem sua norma de sofrimento ao olhar
Cada tijolo de Londres tem uma história de lágrimas, cada bloco de pedra nu na imagem 
       sólida tem uma dor, cada tijolo frio pesa como um tijolo
Cada galho retorcido, cada folha ausente, cada raiz na terra fria e escura, cada palavra 
       perdida, cada pedaço de tristeza, cada gesto contido, cada depressão do olhar dilacera
Tudo, tudo em Londres dilacera a alma e derrama cinzas
       sobre os olhos

Não! Eu não teria um filho em Londres!
Em Londres, latinos, indianos, negros, russos – todos são ingleses
Como duas senhoras inglesas de olhos azuis comendo um prato de canjica amarela e 
       pondo os assuntos em dia num restaurante do Teatro The CUT na Union Street em 
       South Wark
Não. Eu não suportaria a frieza, a rigidez dos gestos, o controle permanente do olhar
Não poderia manter esse ar distante que faz com que um metrô lotado pareça repleto
       de londrinos únicos que parecem estar sozinhos o tempo todo e desconhecem a
       existência de todos os demais
Uma coisa impressionante, porque é como se cada um estivesse só
       e na verdade é isso:
Cada londrino é um ser só.
Londres é habitada por humanos solitários.

Trouxe um galo de Londres – um galo de olhos negros cintilantes e penas cinzentas 
       escuras como a noite – um galo que, quando olhei nos seus olhos, percebi logo ser a 
       mais pura criação de Londres

Em Londres eu aprendi o que já devia saber – anda pela sombra quem tem medo do sol – 
       faz pela vida quem cuida dos seus
Tanta tristeza exige manter o coração aquecido.

Por isso, não pare, não deixe o vento gélido chegar ao seu coração. Proteja o seu coração.
Esse é o segredo.
Esse é o caminho.
Aqueça o seu coração. 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Perna fraca


Todo ano e todo mês.
Primavera e verão.
Outono e inverno.
Todo ano e todo mês.
Sem aviso prévio.
Sem comunicado.
Sem dizer adeus.
Sem permissão.
Sem poder dizer
tudo
o que ficou por dizer...

Agora
estou com uma perna que não me ajuda
perna fraca
perna que me levava aonde eu queria e agora me leva
aonde quer
Perna contraditória não é de hoje
por causa dela nunca consegui ser bom no futebol
Perna que garantiu minha força ideológica
minha certeza, meu amor testemunhal
Um dia pensei, mas logo desisti,
é tão injusta a consciência no lado sul do mundo
Neste hemisfério desgraçado sofro de muitas dores
falamos em vão para platéias e microfones
vemos morrer nossas mulheres sempre calados
e não sabemos direito o que fazer para salvar o mundo
Mas não me conformo com isso
Não me conformo com a tristeza de hoje em diante
e sempre

Vendo morrer uma a uma as mulheres de minhas vidas
sei, certeza certa, que não cederei à tristeza
grudarei um sorriso na boca e direi sempre
às mulheres que crescem no jardim das tardes
no quintal das casas e nas sacadas celestiais
vale a pena viver mesmo que  seja um dia
vale a pena amar mesmo que seja eu
vale viver pelas mulheres
vale a pena viver pelas mulheres
da minha vida

sábado, 15 de dezembro de 2012

Quando eu nasci

Quando eu nasci
Não tinha nenhum anjo perto de mim.
Então, eu mesmo disse:
Merda!

Depois
a cada vez que eu morri
fui renascendo mais duro
mais velho, mais só.

Hoje
não adianta dizer mais:
meu amor.
O amor dorme bêbado e fugitivo
à minha esquerda.
Não adianta dizer mais:
vamos juntos
colher pássaros azuis no horizonte.
Não adianta dizer mais:
eu te amo como um caminhão,
um caminhão vermelho.

Sobra uma única certeza:
a vida há de prosseguir
miserável como antes,
solitária como antes,
dura como antes. 

Mas vamos estar inteiros
porque nenhum braço meu
ficará preso ao impossível.
Nenhuma perna minha
ficará perdida
nas esquinas do tempo.
Só meu coração, talvez,
esse peso inútil
no lado esquerdo do peito,
eu deixarei em casa
sobre a escrivaninha.
Segurando papéis e panfletos
como uma pedra
ou uma espátula. 

Amor

Ela veio depois da chuva
entrou na minha vida como um rinoceronte
um rinoceronte azul

Não deixou pedra sobre
pedra
revirou meu coração
chafurdou na minha cama
e disse sorrindo
que já era minha dona

Aos poucos
foram nascendo flores na casa
uma nova construção dos gestos e do tempo
a água e o cimento misturados com as mãos
o riso e a lágrima soldados com beijos
os gritos, os sentimentos roubados
em desordem, filhas

Eu queria lhe dar uma estrela
e os céus
os céus só me enviaram relâmpagos

Miseráveis

Felizmente
a vida é muito mais bonita que a poesia

Acordei com saudades

Estranho
faz cinco anos
              - seis? -
um dia ela disse
   tchau!
   Quem está vivo
   sempre se encontra.

Depois
vieram atalhos
viagens, desprezos
loucuras e prazeres

             Habitei
             centenas de lugares
             rasguei o mundo
             com as mãos
             abri
             milhares de portas
             e não estavas
             atrás de nenhuma

Eu me lembro
o que ela tinha de melhor
era um sorriso
um jeito

Hoje eu duvido
quem está vivo
nem sempre se encontra

Todos os sentimentos estão aqui

A tua presença
água verde, seios
cristalinos, ancas
ondas
quebrando as costelas

A tua ausência
o branco e o preto
o silêncio seco
o peito árido

Desertos

Eu
feito touro às vezes
o coração feito
tigre

O vinho
me mantém no ar

Gritos de guerra
lanças
fronteira de sonhos
vento
duas mãos
e nenhuma arma

A certeza
a dor
o ódio
o amor
em desordem

Os séculos
passam

Só o vinho
me mantém
no ar.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Hollywood

Eu te amo 
e vou repetir sempre
tantas vez que terão de inventar
uma nova matemática

Mesmo assim
quando isso acontecer já será inútil
porque de novo não terão como calcular
quantas vezes eu te disse
eu te amo

Agora
eu queria te dizer uma coisa
uma só

Não te amo muito
ou pouco ou
demais

Não te amo como nos filmes de Hollywood
como nas novelas da Globo
ou nas peças de Shakespeare

Nem te amo 
talvez
como queres

Eu te amo
como
sou

Com meus díspares de meias
meus defeitos todos
meus acertos poucos
meus medos
minhas bandeiras ao vento
com tudo o que trago dentro
do coração

Exagerado


Obstáculo intransponível
dar conta de amor tamanho
por breve o tempo
da minha vida

Certeza intransferível
da urgência do presente
Exagerada paixão
Paixão exagerada

Inútil


Inútil insistir na espera.
O trem do amor
passou.

Agora
tudo foi em vão.
A estação da vida
agora
foi.

Resta pouco.
Resta tempo.
Mármore branco
sobre tudo.

Inexorável.

Limite

No centro da casa
a loucura cobra o seu preço:
o mundo adquire contornos
paisagem após a miséria
cotidiana

Não existe rota de fuga ou certeza
Somente os apaixonados acreditam na eternidade do futuro
Agora cabe construir o tempo com mãos frágeis

       Difícil conquista
       entre o cinza concreto
       e as margaridas
       azuis, margaridas verti
       cais, margaridas fi
       xas, margaridas a
       margas




Tempo


Vivi num tempo em que o tempo existia
Levava-se horas para ir de um lugar a outro e
no inverno
tomava-se banho uma vez por semana

No verão
até banho de chuva
pelado
no campo
cercado de horizontes
era permitido

A água caía limpa
em grossas gotas mornas
lavando o corpo e os
pecados


Agora, não existe mais tempo
Inventaram a fibra ótica e a gente
vai poder estar em qualquer parte
num segundo

Agora,
via fax,
a distância entre a minha casa
e a Praça do Avião
é mesma que daqui
até o Japão

Por isso
agora que não existe mais tempo
ou distância
só nos resta concluir
que não existimos mais
nem existe mais nada
ou coisíssima alguma

Eu, de minha parte, me precavi
Trago no bolso esquerdo
sempre um pouco de tempo
enquanto que no direito
guardo alguma distância

Minha distância é feita
de horizontes sem fim,
e o tempo
é dos que não existem mais
É feito de noite e dia
e dá direito
às quatro estações

Impossível


O horizonte
nunca é o mesmo
no horizonte.

Como
um rinoceronte azul
numa cristaleira.

Memória


A vida que eu tive
hoje é passado
passado
não morto e enterrado
porque ódio não tenho
tenho a memória em retalhos 

Inominável


Todos os dias como peras
todos os dias como
peras
sob o sol
calor e suor
solerte
salmos e sós
como rosas
despetaladas
testemunha da vida
que houve
do vermelho
desfiando a paisagem
e agora quase nada
quase tudo
na beleza que há
cheiro de rosas no cio
perfume das coxas
seios delicados
montanhas de prazer
um grito, um gemido
igual a si próprio
inominável ventre
do paraíso
melhor que tudo do amor
eu não sei dizer.

Nós


Nós amamos
em condições
adversas.

Naufrágio


O amor se esborrachou no meio do caminho

Lutei
até mais não poder

Agora
meu coração leva tombos
entre as costelas

Náufrago de sonhos
afogo incertezas
cachaça
limão e gelo

Um homem
confrontado com seus limites
a assistir impassível
o trabalho do tempo
tecendo a explosão dos dias
em horas incontroláveis

Modernidade


Drummond que me desculpe:
O dia de hoje não tem memória
e este é um tempo decisivo
tempo de coma alcoólica
e discurso improvisado

Aos poucos
a cidade se move
cidade dura
num tempo duro
cheio de ruas
decisivas, esquinas
incontroláveis, restos
das horas.

Amor


Ando em em nuvens
quando te vejo
Tenho forças
sentimentos exagerados
Exagerados

Te amo
sem saber quanto

Sei
que não cabe em mim

Cidade


Muros de cimento
O cinza penetra os ossos
e quebra

O vinho, a cachaça, o sonho, a cerveja,
                                    o conhaque, o delírio
é melhor

As ruas
da minha cidade
não têm esquinas

                      ou fuga
                      possível

Inútil
a diária
brutalidade

Fim


Agora é a ante-véspera do fim

Nenhuma tragédia, nenhum drama, nenhum
transcrescimento, apenas um
triste e melancólico
fim

Um fim
solitário
inacessível
distante além da distância
fim em si mesmo
nuclear, fatal

Um fim somente
demente
incompreensível
anterior a tudo
posterior a nada

Um fim desfecho
desenlace, limite, esgotamento
exaustão

Um fim extremado
conclusivo, consumido
finalizado

Um fim medíocre
reles
desses que não tem significado
não são esperados
ninguém lembra
não tem qualquer
importância

Um fim
simples, um fim
que encerra, que acaba, que fecha, que
extingue, termina, cessa, mata e que
é triste por isso: porque
é apenas um triste
melancólico
medíocre
fim

Pequeno


Hoje não estás
no lado esquerdo da cama

Hoje
tenho apenas tua ausência
os medos comuns
e alguns desconhecidos
de te perder

Medos idiotas, eu sei
medos loucos, medos
de amor

É que a saudade
esta puta sempre triste e cinzenta
sentou a minha mesa
e fuma os meus cigarros
um atrás do outro

Eu queria tanto
dizer que te amo tanto
mas de um jeito tão enorme de grande
que todas as mulheres do mundo
morreriam de inveja

Por isto
quando chegares daqui a pouco
guerreira e cansada do trabalho
desculpa o jeito meio atravessado
é que eu te amo tão assim
que eu nem sei

A força que move o sol
move o universo
em que te moves

Notas


O dia de hoje não tem memória
atravessou a noite feito celerado 
enquanto milhares de rosas bateram asas para o oeste azul
e a água solitária restou sobre a mesa doendo pássaros feridos nos olhos

No lado norte da vida
quebraram minhas costelas e o silêncio seco
Mas a lua grande nas costas foi insuficiente para enterrar meu coração na estrada

O sol e a incerteza moveram a cidade e as esquinas duras cheias de desvios cristalizados
Revirei o verde dos teus olhos com um punhal até encontrar a luz ardente
Cortei corpos pelo caminho e só enterrei meus mortos necessários
Construí impérios sobre o vermelho e mudei a paisagem
Não disse adeus, não disse quase nada

Não

O dia de hoje não tem memória nem fotografia
atravessou a noite feito celerado cortando pedaços de noite com um machado
milhares de rosas bateram asas para o oeste azul em busca do sol cálido
e a água solitária restou sobre a mesa doendo pássaros feridos 

Não disse adeus, não disse quase nada
Mergulhei no verde dos teus olhos até encontrar a luz ardente

Este tempo é andaime comprometido com a beleza da emoção
que fiquem sabendo as mulheres que serão paridas
as raízes, a lua áspera

Este tempo é um e se multiplica nos céus esverdeados
que fiquem sabendo as ruas tortas, os becos de chumbo
as estrelas solitárias

Quando começar a guerra interminável
minha boca gritará gritos de tigre durante o ataque fulminante
mas sempre sobrará tempo
para dar-te um beijo
tempo para um sorriso diante do verde mar dos teus olhos verdes
nas tardes verdes do nosso tempo

Quando acabarem minhas culpas terei construído um edifício de mármore azul
uma pirâmide de gestos delicados para ser vista no lado avesso do mundo
e uma estrada de oito pistas

Quando acabarem minhas culpas lavarei o assoalho da minha alma com água cristalina
e deixarei meu coração vermelho exposto ao sol, ainda que o sol de mim tenha ciúmes

Eu sei, nada será como antes
O sol e a incerteza moveram a cidade e as esquinas duras cheias de desvios cristalizados
Muitas pontes se foram durante o caminho das pedras
Ruíram no rio das horas intermináveis que não pudemos suportar

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Uma rosa

Te dou uma rosa que não é
uma rosa mas o lado
norte
do meu coração

É que os outros
os outros, meu amor
não servem pra ninguém, nem pra
nada
a não ser para encherem-se de
medo às vezes
ódio, dúvida e outras coisas
absurdas
como o aço de um punhal
ou a compaixão
por nossos
inimigos

Mas apesar de tudo
desde hoje e para sempre
uma coisa é certa
                 esta rosa
que não é uma
rosa seguirá em tuas
mãos assim como
tu
seguirás comigo
                ao assalto
               ao assalto
                  dos céus

FINAL


Ela saiu da minha vida
como um rinoceronte
um rinoceronte
de aço
dono de toda fúria
de toda raiva, de todo
ódio
metálico

Em mim sobrou um espaço,
imenso espaço devastado,
certezas que era melhor não tê-las
e um amargor na boca,
ressaca eterna de um porre de vida

domingo, 22 de abril de 2012

Adeus


Um resto de sombras sufoca os gestos desconexos
e um casal galopa em pêlo sob a lua em chamas

Às quatro da manhã não resta senão um caminho inexato
e um lento prosseguir por entre árvores esfarrapadas com destino incerto
Às vezes, à direita, surge uma casa como se fosse a mesma,
monumento humano afogado em silêncio
através dos séculos

Não seria a mesma coisa dar-te a mão agora,
mármore frio, estátua de olhos azuis fixos nos leões do entardecer
Não seria a mesma coisa que um passado que não tive,
seria uma rua deserta até a eternidade
um gesto inútil no horizonte do tempo
sufocado lentamente num vento de sombras