sexta-feira, 30 de março de 2012

Infância


Nasci num mundo que não existe mais.
Não tinha bonde, não tinha trem, nem luz elétrica.
As estradas eram caminhos abertos,
e a noite a gente iluminava
com o brilho dos olhos.

Meu vizinho mais próximo
morava a dois quilômetros.
Brincando de atirar pedra
me atirou uma faca na testa.
A maldade humana já existia
lá, como aqui.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dias inúteis

Há dias inúteis no tempo,
dias em que o tempo é nada
como se fosse possível.

Nenhum gesto, nenhum sorriso
nem mesmo um grito.
Simplesmente
o coração bate por vício
e respiramos por falta absoluta
do que fazer
         como monumentos
como monumentos fixados no tempo.

São dias em que o tempo fica preso
num desvão das horas
e junto com ele a vida
agoniza e chora
como cadela
          que é
abandonada para morrer.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Aniversário

Trago os olhos cansados, e alguns díspares de meias.
Nas vitrines, os manequins sorriem alegres,
e eu preciso resistir olhando o mundo.

Vinte e cinco anos neste país é metade de uma vida
e eu sequer tenho uma arma.

Aos poucos
vamos chegando,
com as mãos vazias e olheiras,
à metade derradeira de nossas vidas.

É tempo de solidão de novo. Tempo
de miséria absoluta.

Posso seguir vivendo assim? Posso
 resistir? Sobreviver ao tempo?
Às horas? Aos minutos?

O coração bate o estritamente necessário.
Em silêncio, os dias se sucedem.
Aos poucos acumulam ódio
e amor.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Sentido

Cidade dos anjos caídos
último erro
contornado de solidão.

Dias diversos
diversas noites
flores mortas sobre a mesa.

Beijos,
beijos sem cor
na noite interminável
afogada em vodka
e cansaço.

A vida não tem sentido
sem os olhos do desejo.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Fardo

Esta parte do mundo
vive de tentativas rápidas
e copos de cachaça frequentes

Nesta parte do mundo
o cansaço e a raiva
imperam sobre tudo
e o fundamental da vida
se perde em olhares bêbados

Aqui
a vida
é fardo

sábado, 3 de março de 2012

História do Brasil

O coração
os corações, grande
como nunca foi grande
foi pequena
até
a grandeza do Brasil.

Da primeira vez que eu vi
olhei em volta toda
essa tralha, essa
imensa tralha e
tive de rir.

Mas o riso era um mar
em revolta, era
um pranto, era
um canto
e voz torta.

Mesmo assim
o mar
não se abriu, a pedra
não verteu água, não
adiantaram rezas de espécie
alguma, os pães não
se multiplicaram.

O céu anil ficou
cinzento, a verde mata
morta, o ouro - dizem -
veio de moscou e
eu nunca vi.

Desde então
eu só vivi
entre a dor e a alegria
que se atordoa
com a certeza de saber
da primeira que eu vim
que é preciso pôr abaixo
todos os decretos
que é preciso derrotar
todas as bandeiras
que é preciso dar
um tiro no céu
com a espingarda
carregada de estrelas.